Quando os europeus chegaram na América no fim do Séc. XV, traziam consigo uma história em suas cabeças. Uma história de castelos e reinos europeus, com príncipes e vassalos, que logo quiseram recriar no Novo Mundo. Todavia, era um mundo repleto de outras histórias, de índios vivendo em harmonia com aquilo que lhes provinha uma terra prenhe de abundâncias, mas que destoava totalmente dos padrões europeus. O reino de Colombo, assim, rapidamente se transformou em um inferno tropical, cenário bem retratado no filme “1492 – A Conquista do Paraíso”, de Ridley Scott, com Gérard Depardieu e Sigourney Weaver. “King of Mosquitos”, assim era chamado Colombo em determinada cena do filme.
O mesmo se passou no Brasil. Os portugueses cá quiseram trazer a sua história, a despeito das histórias que também já existiam. Gilberto Freire, em sua magistral obra “Casa Grande e Senzala” conta bem o que se passou:
“O português vinha encontrar na América tropical uma terra de vida aparentemente fácil; na verdade dificílima para quem quisesse aqui organizar qualquer forma permanente ou adiantada de economia e de sociedade. Se é certo que nos países de clima quente o homem pode viver sem esforço da abundância de produtos espontâneos, convém, por outro lado, não esquecer que igualmente exuberantes são, nesses países, as formas perniciosas de vida vegetal e animal, inimigas de toda cultura agrícola organizada, e de todo trabalho regular e sistemático. No homem e nas sementes que ele planta, nas casas que edifica, nos animais que cria para seu uso ou subsistência, nos arquivos, e bibliotecas que organiza para sua cultura intelectual, nos produtos úteis ou de beleza que saem de suas mãos, em tudo se metem larvas, vermes, insetos, roendo, esfuracando, corrompendo. Semente, fruta, madeira, papel, carne, músculos, vasos linfáticos, intestinos, o branco do olho, os dedos dos pés, tudo fica à mercê de inimigos terríveis.”
Existe um enorme risco quando se tenta estabelecer o predomínio de uma única história. Não que ela seja errada ou inapropriada, mas no mínimo é incompleta. Todavia, assim se passou na Educação Superior brasileira. Historicamente, os dirigentes governamentais da educação e os membros das diversas comissões do MEC sempre foram, em sua maioria, oriundos de universidades públicas. Em suas cabeças, uma única história: doutores em tempo integral, fazendo pesquisas científicas em universidades e reunidos em suas congregações.
Rapidamente, se estabeleceram hierarquias conceituais: doutores, que são melhores que mestres, que são melhores que especialistas, que são melhores que graduados. Tempos integrais, que são melhores que tempos parciais, que são melhores que horistas. Universidades, que são melhores que centros universitários, que são melhores que faculdades. Instituições públicas, que são melhores que instituições privadas sem fins lucrativos, que são melhores que instituições privadas com fins lucrativos.
Assim, todo o conceito de qualidade foi concebido por um grupo de pessoas, de forma a prestigiar as instituições criadas à sua imagem e semelhança, ou seja, aquelas que fossem capazes de repetir a mesma história.
Assim, a cada nova norma, a cada nova portaria, a cada novo instrumento de avaliação, acentuam-se os movimentos em busca dessa única história. Por exemplo, a LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação – em 1996 fixou que as universidades deveriam ter 33% de seus docentes com a titulação de mestre ou doutor. Em 2008, portaria do MEC elevou esse patamar para 50% e nos instrumentos de avaliação in loco, posteriormente, subiu para 70%. No que se refere à pesquisa, a LDB afirmava que as universidades deveriam ter “produção intelectual institucionalizada mediante o estudo sistemático dos temas e problemas mais relevantes, tanto do ponto de vista cientifico e cultural, quanto regional e nacional”. Todavia, a regulamentação complementar traduziu esse conceito em 1998 (Res. CNE 002) pela exigência de 3 mestrados, a qual foi ampliada em 2010 (Parecer CNE 107) para 4 mestrados e 2 doutorados.
Até mesmo faculdades passaram a ser melhor avaliadas em função de seus doutores e de suas atividades de pesquisa, ainda que conceitualmente elas não tenham sido concebidas para esse papel.
Outras histórias deveriam ter espaço para serem contadas. O próprio Parecer CNE 107/10 chega a esboçar alguns argumentos nesse sentido:
[…] a coexistência de IES com diferentes propósitos institucionais, cumprindo diferentes papéis acadêmicos, deve ser estimulada pelos mecanismos das políticas públicas. (pág.1)
[…] deve ser enfatizada a importância que cada categoria institucional representa em si, ao invés da compreensão infundada de que estas não passam de estágios pelos quais devem passar todas as instituições em sua trajetória evolutiva. […] Não há, no contexto das categorias institucionais, demérito em ter o objetivo de manter uma condição especifica. A diferenciação institucional é necessária para a expansão e a qualidade da educação superior e deve ser não apenas levada em consideração como estimulada no processo regulatório. (pág.3)
Todavia, logo cai em contradição ao estabelecer indicadores que apontam para a história única.
Chimamanda Adichie é uma escritora nigeriana que mostra, em uma imperdível palestra disponível no TED o perigo da história única. Conta como construiu em seu imaginário infantil, a partir dos livros ingleses, os únicos que tinha para ler, um mundo de crianças brancas, loiras, que comiam maças e que ficavam felizes quando o inverno acabava e o sol aparecia, a despeito do fato dela morar na Nigéria, com sol abundante, pessoas negras e com mangas para comer. Conta como ficava indignada quando foi estudar nos EUA e as pessoas só conheciam uma única história de desgraça e miséria de seu país. Conta que o perigo da história única é que ela impede de ver as inúmeras outras histórias que existem, sejam boas ou más.
Sem dúvida, são fabulosas as histórias de muitas universidades públicas, repletas de doutores fazendo pesquisa, não há nada de errado nisso. Muito devemos nos orgulhar dessas histórias. Mas há também muitas outras boas histórias, contadas por pequenas faculdades, que não possuem doutores e que não fazem pesquisas. São histórias que mostram como conseguiram chegar nos locais mais remotos do Brasil, em pequenas cidades, às vezes pequenos vilarejos, onde são a única opção de Educação Superior. Há também as histórias contadas por grandes universidades de massa, com milhares de alunos, cujo mérito não é sua produção científica, mas sim o de proporcionar uma vida melhor para aqueles que educam, a maioria estudando à noite, após uma extenuante jornada de trabalho e que no olhar dos quais pode-se ler: “essa é a minha chance”.
Vivemos em uma terra sofrida, mas fabulosa. Muito maior do que pode caber em uma única história. O Brasil só irá vencer os seus enormes desafios se todos se unirem em um projeto educacional em que haja espaço para que diferentes histórias possam ser contadas.