As guerras do fim do mundo

A Terra do Fogo, na verdade, é uma ilha. Encontra-se hoje dividida entre Argentina e Chile e suas deslumbrantes paisagens encerram importantes episódios da história moderna e contemporânea. Com sua silhueta toda entrecortada, a ilha está separada do extremo sul da América por uma faixa de mar que liga os oceanos Atlântico e Pacífico. Essa faixa de mar se tornou famosa em 1520 quando Fernão de Magalhães conseguiu atravessá-la, permitindo uma passagem mais segura do que o caminho contornando o chamado Cabo Horns, último arquipélago americano antes da Antártida. A partir dessa façanha, a passagem passou a ser chamada de Estreito de Magalhães.

Afirma-se que quando Magalhães passou pela sua região, tinha à sua direita o continente Americano e, à sua esquerda, a face da norte da ilha que acabara de descobrir. E, na margem dessa ilha, visualizou uma série de fumaças oriundas de fogueiras. Tais fogueiras tinham sido feitas pelos índios Selknams, que habitavam a região, e que as estavam utilizando para alertar a presença dos intrusos. Por causa dessas fogueiras, Antonio Pigafetta, escritor italiano que havia pago do seu próprio bolso para viajar com Magalhães, referiu-se à região em seu diário como “Terra das Fogueiras” que depois passou a ser simplesmente “Terra do Fogo”.

A época de Magalhães foi notável. Apenas 28 anos antes, Colombo chegara às ilhas da região das Bahamas. Outras empreitadas antecederam Magalhães, como as de Américo Vespúcio em 1499 e Pedro Álvares Cabral em 1500. Detalhe: Américo Vespúcio foi o primeiro dos descobridores a afirmar que a terra a que Colombo chegara era, de fato, um novo continente. Antes deles, acreditava-se que eram as Índias Orientais. Foi assim, em sua homenagem, que o novo continente recebeu seu nome, apesar da descoberta não ter sido feita por ele.

Após cruzar o estreito que levou seu nome, Magalhães atingiu o Pacífico e seguiu viagem até as Filipinas, onde foi morto em combate com os nativos em 1521, aos 41 anos de idade. Dramática foi a empreitada de Magalhães. Partiram em 1519 de Sanlúcar de Barrameda, na Andaluzia espanhola (Magalhães era português, mas fora contratado pela corte espanhola para realizar a missão), com cinco naus e 256 homens. Três anos depois, concluíram a primeira volta ao mundo, mas retornando apenas uma nau com 18 homens, incluindo Pigafetta, sob o comando de Juan Sebastián Elcano.

Figura 1. Mapa da rota iniciada por Magalhães em 1519 e concluída por Elcano em 1522

A descoberta do Estreito de Magalhães foi um fato memorável, pois permitiu uma rota segura de navegação entre os dois oceanos, sendo a principal rota trans-oceânica até a construção do Canal do Panamá, em 1913. Todavia, durante os primeiros séculos, a região foi utilizada apenas como passagem. Sua colonização propriamente dita só iria se iniciar no Século XIX.

Pouco antes dessa colonização, houve um fato interessante. Em 1763, partiu da localidade de Saint-Malo, na França, o navegador e explorador Louis Antoine de Bouganville. Cinco meses depois, já em 1764, Bouganville chegou a um arquipélago no extremo sul da América, chamando as ilhas de “Malouines”, em homenagem ao porto de onde partiu na França. Em 1767, a França deu as ilhas à Espanha, que traduziram o seu nome para “Malvinas”. Conta-se que as ilhas foram dadas como ressarcimento por um acordo não cumprido em 1725, quando Luís XV, rei da França, casou-se com uma princesa polonesa, quebrando o acordo que havia para matrimônio com uma infanta de Espanha. Na época, a França era uma potência colonial nas Américas, com terras que iam do Canadá até o extremo sul, passando por diversas regiões como a Louisiana, o Haiti e as Guianas. Resolveu, então, presentear a Espanha com um pequeno arquipélago próximo à Antártida, mas a Espanha teve que pagar à França as despesas por essa ocupação (alguns consideram essa passagem como venda, não como doação), bem como expulsar colonos ingleses que ocupavam parte das ilhas desde 1765.

Em 9 de julho de 1816, porém, a partir dos fatos que se sucederam ao famoso 25 de maio de 1810, a Argentina se tornou independente da Espanha, conquistando assim a soberania por todos os territórios controlados pelos espanhóis, inclusive as Malvinas. Na época, entretanto, eram ilhas desabitadas, abandonadas que estavam desde 1811.

A partir do Século XIX a Inglaterra passou a se tornar a principal potência colonizadora do mundo, começando a se interessar vivamente pelo extremo austral americano. Em 1826, a Inglaterra enviou à região uma embarcação do tipo brigue, de menor tamanho, capaz de ser manobrada agilmente, permitindo investigações exploratórias na região. Por causa dessa habilidade exploratória, o brigue foi batizado como Beagle, raça de cães farejadores então muito populares na Inglaterra. O primeiro fato notável do HMS Beagle foi a descoberta, em 1830, de uma segunda passagem ligando o Atlântico e o Pacífico, que permanecera desconhecida por mais de 300 anos depois de Magalhães. Acredita-se, na realidade, que a passagem já era do conhecimento dos ingleses, mas sua existência teria sido mantida oculta. Diz-se que o local seria um dos esconderijos prediletos do corsário Francis Drake. A passagem veio a ser chamada de “Canal de Beagle” e hoje é tida como o limite sul da ilha da Terra do Fogo, tendo às suas margens a cidade de Ushuaia, a cidade mais austral do mundo.

Figura 2. Mapa da região da Terra do Fogo

Outra curiosidade do HMS Beagle, foi sua utilização por Charles Darwin na expedição que empreendeu ao redor do mundo de 1831 a 1836. Durante essa expedição, o Beagle passou novamente pelo canal que empresta seu nome. A partir dos achados feitos durante as viagens com o Beagle, Darwin viria a escrever sua obra “A Origem das Espécies”, publicada em 1859 e que mudou a forma do homem compreender a evolução das formas de vida no planeta.

No ano de 1833, os ingleses enviaram às Malvinas uma esquadra para retomar o controle das ilhas praticamente abandonadas. Havia somente um pequeno destacamento naval argentino que não teve como resistir. Passaram a chamá-las de Falklands, nome atribuído pelo britânico John Strong ao canal que separa as duas principais ilhas, quando por ele passou em 1690, em referência ao Visconde de Falkland, um dos patrocinadores de sua expedição.

Em 1869, os ingleses realizaram o primeiro assentamento de brancos na Terra de Fogo, através do Reverendo Anglicano Thomas Bridges, que veio à região do Canal de Beagle com a missão de evangelizar os índios Yamanás que lá viviam. Estima-se que na época, havia quase 3 mil Yamanás na parte sul da ilha (os Selknams, que fizeram as fogueiras que batizaram a ilha, viviam na parte norte). Passavam a maior parte do tempo em canoas, servindo-se dos animais que abundavam na região e vivendo totalmente nus, mesmo sob o frio intenso, graças a sua fabulosa adaptação que incluía recobrir o corpo com gordura de leões marinhos.

Uma das primeiras iniciativas de Bridges foi dar-lhes roupas, pois não queria vê-los com suas vergonhas expostas. Em menos de 50 anos, praticamente toda população de Yamanás foi dizimada por doenças como tuberculose e varíola, transmitidas, entre outras, pelas roupas que lhes deram. Hoje existe apenas uma última índia Yamaná, com cerca de 80 anos de idade. Todos os demais descentes dos originais são mestiços e aculturados. A família de Thomas Bridges, todavia, se multiplicou e muitos de seus descentes ainda continuam na região. Atualmente, os Bridges estão na 6ª. geração e  seguem a morando na Estância Harberton, que se tornou uma das atrações turísticas de Ushuaia e de onde partem também barcos para visitar os pinguins que habitam a ilhota Martilla, a 10 minutos de navegação da sede da estância.

No final do Século XIX, o governo Argentino passou a se preocupar com a ocupação da região, assediado que estava de um lado dos chilenos, do outro dos ingleses. Assinou, então, em 1881, um tratado com o Chile para estabelecer os limites da partilha da região. A ilha da Terra do Fogo foi dividida verticalmente pelo meridiano 68, ficando a esquerda para o Chile e a direita para a Argentina. As ilhas localizadas abaixo do Canal de Beagle passaram a ser consideradas como chilenas, exceto aquelas localizadas na extremidade do Atlântico (ilhas Picton, Nueva e Lennox).

Todavia, tais acordos apenas representaram o início das hostilidades que se apossaram da região. À presença dos ingleses nas Malvinas, somou-se a reivindicação do Chile para ter acesso ao Oceano Atlântico através do Canal de Beagle, o que significava, na prática, tomar posse das ilhas Picton, Nueva e Lennox.

Para a Argentina, então, ocupar a região mais do que nunca era uma questão estratégica. Todavia, a distância e o clima hostil não despertava o interesse nos argentinos para que lá fixassem suas vidas. Então resolveu o governo instalar na cidade Ushuaia, fundada em 1884, um presídio, que seria uma forma de forçar essa ocupação. Assim, milhares de presos passaram a ser enviados para a região para, inicialmente, construir o presídio e, depois, para nele habitar. O presídio foi inaugurado em 1902 e permaneceu ativo até 1947. Hoje abriga um museu e é um dos pontos preferenciais de visitação turística da cidade.

A tensão na região, porém, foi crescendo. Em 1978, Chile e Argentina praticamente entraram em guerra. Na época, ambos os países estavam governados por terríveis ditaduras militares. No Chile, Pinochet estava no poder desde 1973, quando derrubou o então presidente eleito Salvador Allende. A Argentina, por sua vez, era presidida pelo ditador Jorge Rafael Videla, no poder desde 1976, quando derrubou Maria “Isabelita” Perón, viúva de Juan Domingues Perón e de quem era vice-presidente, eleita em 1973. Felizmente, graças às gestões internacionais, que incluíram o envolvimento do Papa João Paulo II, foi feito um acordo em que a Argentina abriu mão das ilhas, que passaram então a ser território chileno.

Mas, as inquietudes dos militares que dirigiam o governo argentino não cessaram por aí. Em 1982, quando o país se encontrava sob a presidência do General Leopoldo Galtieri, a Argentina mobilizou seus efetivos militares e tomou à força as ilhas Malvinas e as demais ilhas do Atlântico Sul. A reação da Inglaterra, então conduzida à mão de ferro por Margareth Tacher, foi imediata. Após intensos combates, com 649 mortos do lado argentino e 255 do lado inglês, a Inglaterra retomou as ilhas dos argentinos. Relata-se que os descendentes de Thomas Bridges, ainda ocupando a Estância Harberton, foram hostilizados na época e que alguns teriam sido detidos para investigações, sob a suspeita de passar informações aos ingleses por rádio. O Chile de Pinochet, por sua vez, apoiou os ingleses.

Nos bastidores, uma intensa batalha diplomática teria acontecido, especialmente depois que a Argentina afundou o HSM Sheffield inglês, utilizando um míssel Exocet de fabricação francesa. Os ingleses teriam se irritado com o governo francês, pois também tinham adquirido mísseis Exocet e, por isso, teriam pressionado os franceses a lhes passar os códigos secretos dos mísseis vendidos aos argentinos. O governo francês não passou os códigos, mas retirou o apoio de técnicos franceses para os Exocets, o que na prática inviabilizou o disparo de novos mísseis.

A Guerra das Malvinas desgastou o governo militar argentino, levando à renúncia do presidente Galtieri e o retorno da Argentina à normalidade democrática, com a eleição de Raúl Alfonsín como novo presidente em 1983. Alfonsín se preocupou em pacificar a região. Em 1984, realizou um plebiscito para ratificar o acordo feito com o Chile lhe cedendo as ilhas do Canal de Beagle. Mais de 85% da população Argentina votou pela paz, sendo contra qualquer hostilidade para recuperar as ilhas. Mesmo na Terra do Fogo a maioria votou pela paz, ainda que essa porcentagem tenha sido a menor do País.

Mas nas Malvinas, a polêmica ainda continua. De um lado, muitos dos argentinos atuais não concordam com a guerra. Nas ruas de Ushuaia, alguns afirmam: “Nas Malvinas morreram menos de mil do nosso lado, mas o governo militar matou mais de 30 mil argentinos. Então, onde está o inimigo?”. De outro lado, a perda das Malvinas permanece como uma ferida aberta. Em 1991, a Argentina mudou status da região de território para província autônoma, passando a se chamar de “Província da Terra do Fogo, Antártida e Ilhas do Atlântico Sul”, o que assinala suas pretensões territoriais não apenas pelas Malvinas, como também por parte da Antártida.

Ainda hoje, no centro de Ushuaia pode ser visitado o monumento em homenagem aos mortos durante a Guerra das Malvinas, onde se encontra a seguinte inscrição:

El pueblo de Ushuaia a quienes con su sangre regaron las raíces de nuestra soberanía sobre Malvinas… Volveremos!!!

2 respostas para “As guerras do fim do mundo”

  1. muito lindo! estive em Ushuaia por 11 dias e voltei hoje!
    suas infos estão corretas com tudo que aprendi lá
    obrigada

  2. Adorei o relato, muito rico em informações. Uma verdadeira aula de história . Adorei tudo. Estive em Ushuaia ,andei pelo canal Beagle , fui na Penitênciaria, li vários depoimentos sobre os índios que habitavam está região.
    Realmente temos que levar em consideração Fernão de Magalhães o que fez uma viagem por estas bandas e que fez a diferença.
    Parabéns!

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