A Terceira Onda

O que virá depois que se exaurir o modelo baseado em IPOs, fusões e aquisições no ensino superior privado.

A primeira onda

Antes da terceira, obviamente, havia a primeira e a segunda.

A história da primeira onda é conhecida por todos. Depois que houve a flexibilização das exigências legais para a criação de cursos e instituições de ensino superior, em 1996, o Brasil assistiu uma enorme expansão do número de matrículas, cursos e instituições.

Até então, conseguir uma autorização no MEC era uma via crucis, aonde somente os lobbies mais estruturados tinham condições de obter as valiosas autorizações. O processo todo tramitava no Conselho Federal de Educação (CFE), cujo funcionamento era cercado de procedimentos considerados nebulosos, a ponto do mesmo ser extinto pelo Governo Itamar Franco, em outubro de 1994. Com a posse do Governo FHC, em 1995, o CFE foi substituído pelo atual Conselho Nacional de Educação (CNE). Logo em seguida, em 1996, veio a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), que, entre outros dispositivos, mudou a sistemática de autorização para abertura de novos cursos, criando inclusive a figura da autonomia para instituições universitárias.

A prioridade nessa época era lançar cursos. Tudo dava certo, bastava oferecer o curso e os alunos vinham às pencas. Existia uma grande demanda reprimida, uma massa enorme de pessoas que queriam estudar, mas que não conseguiam entrar nas faculdades mais tradicionais.

O desafio naquela época era conseguir a autorização junto ao MEC. Mantenedores se habituaram a ir mensalmente à Brasília, em especial na semana em que ocorriam as reuniões do CNE, para agilizar seus interesses. Surgiram consultorias especializadas nesse segmento, capazes de conduzir todo o processo, desde a elaboração de projetos pedagógicos, até o recebimento e interpelação de comissões de avaliadores.

Outro fato curioso dessa época é que a quase totalidade das IES privadas mantinham seu caráter sem fins lucrativos, apesar da nova legislação ter permitido a criação de entidades com fins lucrativos. Afinal, não compensava recolher os tributos ligados ao lucro, já que era possível fazer retiradas do caixa da instituição de outras formas, tal como a remuneração de familiares e o custeio de despesas pessoais.

Entretanto, não era possível fazer a retirada de somas mais expressivas de dinheiro e a opção adotada por quase todos foi a imobilização do lucro em imóveis utilizados pelas instituições.

A crise da primeira onda

Mas como tudo que é bom, um dia acaba, isso também ocorreu com a primeira onda. Dois fatos foram decisivos para isso. O primeiro foi o esgotamento da demanda, ou seja, depois de atingir um fabuloso índice de crescimento de 17,5% ao ano, em 2000, as taxas foram caindo gradativamente.

Outro fato que acentuou a crise foi a redução dos valores das mensalidades, especialmente a partir de 2003. Inaugurava-se a guerra dos preços no setor.

Esses dois fatos pegaram de surpresa um setor com baixíssimo grau de profissionalização, acostumado com uma farta demanda, aonde eram desnecessárias as chamadas boas práticas de gestão. As mantenedoras, então, começaram a se endividar. Surgiram os atrasos no recolhimento de tributos, especialmente os trabalhistas como INSS e FGTS. Depois vieram as securitizações dos recebíveis e outras dívidas junto aos bancos. Por fim, os atrasos nos pagamentos, as sumárias demissões de doutores e até mesmo a busca por agiotas.

A segunda onda

A partir de 2005, com a aquisição do controle societário da mantenedora da Universidade Anhembi Morumbi pelo grupo americano Laureate, iniciou-se uma nova etapa. Os grupos financeiros, nacionais e internacionais, viram nas instituições privadas de ensino superior uma excepcional possibilidade obter retornos expressivos para seus ativos, com taxas muito superiores a outras opções do mercado.

A tese desse tipo de investimento baseava-se em alguns princípios:

  1. Remover a gordura consumida pelas estruturas familiares, usualmente remuneradas em padrões acima do mercado, em cargos desnecessários e, quando necessários, com baixa produtividade.
  2. Otimizar os custos administrativos (RH, TI, marketing, etc…) em operações em rede, com ganhos de escala.
  3. Redução das cargas horárias dos cursos ao mínimo exigido pelo MEC.
  4. Aumento do número de alunos por turma através da junção de turmas em “ensalamentos horizontais” (disciplinas comuns em diferentes cursos) e “ensalamentos verticais” (módulos semestrais não sucessivos).

Com base nesses princípios, surgiram vários grupos consolidadores. Chama a atenção o interesse de bancos e fundos de investimento, como é o caso do GP Investimentos e o UBS Pactual, que concretizaram investimentos no setor, além de outros que estão na busca de oportunidades.

Com pequenas variações, todos os grupos consolidadores adotaram a mesma estratégia: redução de custos com base no modelo descrito anteriormente e expansão da atuação através da compra de instituições e/ou crescimento orgânico com a abertura de novas unidades/campi.

A aquisição de instituições familiares encontrou um modelo interessante, remunerando os ex-donos pela carteira de alunos, além do aluguel dos imóveis que foram adquiridos por conta da impossibilidade da distribuição dos lucros mencionada anteriormente.

A abertura de capital (IPOs) na bolsa de valores, tida erroneamente por alguns como uma forma rápida de ganhar dinheiro, é tão somente uma alternativa para serem obtidos recursos para financiar o crescimento. Existem várias outras, inclusive os tradicionais financiamentos bancários.

Na verdade, o que está ocorrendo na segunda onda é uma mistura do que foi realizado na primeira onda (expansão da oferta), combinado com uma otimização dos custos.

A crise da segunda onda

Essa crise ainda não começou propriamente dita, mas já começam a surgir alguns sinais.

O primeiro sinal é a enorme dificuldade que os grupos têm em criar uma identidade de marca que permita diferenciar o grupo como um todo da primeira instituição, ou seja, a instituição de origem. É muito comum que as atividades da holding se relacionem de forma incestuosa com as atividades da primeira instituição. Poucas conseguiram caracterizar claramente essa divisão e muitas vezes esbarra-se na vaidade em cima do nome original em detrimento de outras oportunidades mais significativas. É muito difícil sacar a holding de dentro da instituição mãe.

Outra dificuldade está em serem realizadas boas aquisições. Existem mais de 2 mil instituições privadas no Brasil, mas menos de 10% delas estão relacionadas com os grupos consolidadores. Havia uma expectativa que ocorreria uma avalanche de aquisições a partir de 2006, mas isso não ocorreu. Os principais obstáculos encontrados pelos grupos foram:

  1. Não existem muitos proprietários dispostos a vender suas instituições e quando querem, pedem valores absurdos, sem qualquer base racional de valuation que justifique o valor apresentado.
  2. O assédio por parte dos grupos consolidadores e de outros fundos interessados no setor inflacionou os preços, fazendo com que os donos de faculdades aumentassem ainda mais seus preços.
  3. Muitas instituições possuem patrimônio líquido negativo, com dívidas astronômicas que impossibilitam a negociação.
  4. A ausência de contabilidade estruturada e auditada torna difícil estimar as possíveis contingências existentes e muitas vezes não existem garantias formais por parte dos vendedores capazes de suportar a operação.

Além desses sinais que começam a aparecer, em breve os grupos consolidadores irão se deparar com a seguinte situação: ainda que consigam realizar aquisições de qualidade e que consigam reduzir os custos das operações, chegará uma hora em que o modelo irá se exaurir. A redução do custeio gerará crescimento nas margens por 2 ou 3 anos no máximo, mas será incapaz de manter um crescimento prolongado de maneira sustentável. Quando acabar a gordura, não será possível cortar a musculatura.

O desafio será o crescimento do market share e essa será a base da terceira onda.

A terceira onda

As duas primeiras ondas se beneficiaram de condições estruturais onde era possível obter ganhos em lacunas reprimidas, quer seja na demanda (primeira onda), quer seja na eficiência de custos (segunda onda). Isso fez com que quase todos os grupos se comportassem da mesma forma. Ou seja, se for feita a seguinte pergunta aos funcionários/professores de uma determinada instituição:

“Qual a nossa estratégia para vencer a concorrência nesse mercado?”

dificilmente se obteria uma resposta única. Na verdade, não existe uma estratégia. Ainda não se briga de verdade com a concorrência. O que existe na realidade é uma mal disfarçada guerra de preços, através de bolsas, descontos, convênios com empresas, etc. Ainda persiste a lógica de quanto mais alunos melhor, não importando qual o tíquete médio.

A pergunta acima poderia, ainda, ser separada nas seguintes questões:

  1. Em qual mercado atuamos? Que tipo de alunos pretendemos servir?
  2. Qual o tamanho desse mercado, em que posição estamos e quais são nossos principais concorrentes?
  3. O que estamos fazendo para vencer essa disputa e o que estão fazendo os nossos concorrentes?

A terceira onda, assim, será aquela que poderá sustentar o crescimento, com margem, no médio e longo prazo. E isso só poderá ser feito através da geração de valor perceptível ao cliente, no caso o aluno.

É claro que ainda há muita lição de casa a ser feita: os boletos precisam ser emitidos corretamente aos alunos, as filas do atendimento precisam sumir, os bebedouros precisam estar sempre limpos, os professores precisam começar e terminar as aulas no horário, a contabilidade precisa ser fechada até o dia 5 do mês seguinte, etc. Quem já tiver resolvido definitivamente os problemas básicos desse tipo em sua instituição, que atire a primeira pedra.

Mas a eficiência nesses processos não será o fator “matador”, ou seja, não será isso que vencerá impiedosamente a concorrência.

Geração de valor: a base da terceira onda

Muitos especialistas em educação apontam que a qualidade será o principal diferencial no médio prazo para esse mercado. Segundo eles, só sobreviverão as instituições que conseguirem manter um padrão de qualidade diferenciado, eu mesmo defendi essa idéia no passado.

Hoje, porém, estou um tanto cético com essa teoria. A questão é que o tema qualidade é algo tão abstrato, tão controverso, tão intangível e de tão difícil mensuração que será impossível que os prospects (candidatos) percebam valor em uma instituição com base em sua qualidade. O futuro aluno não tem condições de avaliar concretamente a qualidade da educação de onde estudar. Ele não sabe o que é um projeto pedagógico, ele sequer imagina avaliar os curricula dos professores a partir da Plataforma Lattes do CNPq e jamais irá tabular os resultados das avaliações realizadas pelo INEP e disponíveis na Internet.

Toda percepção de qualidade por parte do candidato se dá de forma intangível, a partir dos conceitos consolidados das marcas. É muito mais uma questão de branding do que de estruturação acadêmica, por mais que isso possa doer aos ouvidos de educadores como eu.

O mesmo ocorre em outros segmentos. Por exemplo, como pode ser avaliada a qualidade em um laboratório de diagnóstico? Podemos avaliar se não há filas, se existe estacionamento, se os exames podem ser obtidos pela Internet, se os atendentes são cordiais e se o cafezinho é gostoso. Mas não temos condições de avaliar o serviço propriamente dito (a calibração dos equipamentos, as metodologias empregadas, o uso de contra- provas, o treinamento dos profissionais, etc…).

Bem, se fizermos um paralelo com o ensino, poderíamos então afirmar que uma estratégia eficiente de diferenciação seria oferecer serviços de mais qualidade, desde o atendimento, até a aula propriamente dita. Os cursinhos pré-vestibulares, de certa forma, já perceberam isso e selecionam somente excepcionais oradores como professores, já que estão libertos do ranço acadêmico das titulações de mestre e doutor.

Para mim isso precisa ser feito, mas não está aí o “pulo do gato”. É óbvio que os projetos pedagógicos precisam ser bem estruturados, os planos de ensino precisam chegar corretamente aos alunos e o acompanhamento docente precisa ser feito. Mas vale notar que uma estratégia baseada nesse tipo de pensamento é somente incremental, ou seja, venceremos a concorrência porque fazemos o mesmo que eles fazem, só que com mais eficiência e a um custo menor.

Fazer melhor ou fazer diferente?

O caso do iPod, da Apple, é exemplar para ilustrar o que estou defendendo para a terceira onda. Antes dele, as músicas eram ouvidas basicamente em aparelhos que reproduziam CDs. A entrada do iPod, todavia, revolucionou completamente esse setor e mudou a história da indústria fonográfica mundial. Ninguém discute se o iPod possui uma qualidade áudio melhor ou pior que os tocadores de CD, não é aí que está a questão. O iPod simplesmente é diferente e caiu no gosto do consumidor. Mas vale notar que a qualidade do iPod é boa. Em outras palavras, sem qualidade, o iPod não teria o sucesso que teve, mas somente ela não garantiria o resultado obtido.

Há vários casos em que o sucesso tem uma relação semelhante com a qualidade, ou seja, ela precisa existir, mas não é o fator decisivo. Quem presenciou o lançamento do Windows 95, assistiu as hordas de consumidores invadindo ferozmente as lojas para comprar milhões de cópias de um produto cuja qualidade sequer era conhecida. Ou seja, não foi a qualidade que fez o sucesso desse produto.

Ainda está para surgir algo semelhante na educação, em especial no ensino superior. O modelo é totalmente commoditizado, baseado na contratação de professores horistas para ministrarem aulas em disciplinas, cujo conjunto compõe o curso. É curioso, mas o ensino superior talvez seja o único segmento em que o “core business” é realizado por funcionários em tempo parcial e que trabalham na concorrência. Para piorar, os chefes dos professores (coordenadores) também não são funcionários exclusivos.

O problema é que a única alternativa de vinculação docente é o anacrônico modelo de contratação em tempo integral à semelhança do que ocorre nas instituições públicas, as quais infelizmente se perderam em suas proteções sindicais corporativas.

Não quero decepcionar o leitor desse artigo, mas não ouso prever com exatidão o que será a terceira onda. Mas com certeza será algo diferente, não somente melhor. Será algo que romperá completamente com os modelos educacionais vigentes, baseados em disciplinas tradicionais, com seus pré-requisitos e outros grilhões medievais.

Mas ainda estamos longe disso. Todas as inovações que surgiram na educação nos últimos anos, como o ensino a distância, os cursos tecnológicos e o aprendizado fora da sala de aula nas chamadas “atividades complementares”, ainda são percebidas pelos alunos com algo de menor valor. Para o aluno, o bom mesmo ainda são os bacharelados, ensinados na sala de aula, ao vivo e em cores e, de preferência, com apostilas.

A terceira onda, assim, ainda está por vir. Será algo completamente inovador, talvez sem salas de aulas, sem horários, sem matrizes…Mas não será necessário convencer o aluno que é uma coisa boa, ele simplesmente vai se desesperar para estar dentro dela.

Como em qualquer inovação, a vantagem está em quem sair na frente. Se for boa de verdade, os outros vão copiar.

Quem se habilita?

https://livrozilla.com/doc/607772/a-terceira-onda