Juliana, a direita e a esquerda

Juliana é uma menina comum em seu bairro. Tem 22 anos, gosta de ouvir música, de passear com as amigas e sair para dançar. Quando consegue juntar algum dinheiro, gosta de comprar uma roupa nova ou alguma bijuteria. Na verdade, até que Juliana se saiu bem melhor que muitas de suas colegas. Conseguiu concluir o Ensino Médio, o que lhe ajudou a arrumar o emprego de balconista em uma loja de roupas em um shopping.
Hoje Juliana está mais feliz que o habitual. Seu pai e seu irmão decidiram ajudá-la a realizar um sonho, que é fazer uma faculdade. Os dois trabalham como taxistas em Salvador e vão reservar todo mês um dinheiro para pagar a mensalidade da faculdade que ela vai cursar à noite, pois precisa continuar trabalhando de dia para pagar as outras despesas. Mesmo assim, ela está muito feliz. Se conseguir se formar, vai ser a primeira da família a ter um diploma. Quem sabe, um dia, consiga até ser gerente da loja em que trabalha, imagina ela.
Juliana nunca conseguiu entender muito bem porque ela tem que estudar em uma faculdade particular, enquanto o filho do dono da loja estuda na Federal, de graça. Tentaram explicar para ela, mas achou a história muito complicada e desistiu de entender. Entrar ela mesma na Federal, nem pensar. O exame é muito difícil, ela nem tentou. É coisa para gente rica, pensou.


A história de Juliana é muito mais comum do que se imagina. Todos os dias, milhares de jovens de classes humildes se dirigem a faculdades particulares, com o sonho de ter um diploma superior. São Pedros, Josés, Marias, Silvanas, Ricardos, Danielas e tantos outros. Segundo dados do MEC, no Estado da Bahia são quase 140 mil pessoas que estudam em faculdades particulares, a maioria à noite. Nas instituições públicas são 70 mil, a maioria de dia.
Mas o sonho de Juliana freqüentemente é ameaçado. Existe um ódio mal resolvido contra as faculdades particulares, que vez por outra ganha força na mídia. Os argumentos são os mais variados possíveis: “o ensino não é mercadoria”, “a educação não pode servir ao lucro”, “os donos de faculdades só querem mesmo ganhar dinheiro”, entre tantos outros chavões.
Alega-se que a educação seria um bem público e, portanto, não poderia ser explorada comercialmente, ainda que a Constituição Brasileira, no seu Artigo 205, determine que o ensino superior seja livre à iniciativa privada.
É difícil explicar a razão desse ódio. Ora, se tudo que fosse de interesse público não pudesse ser explorado pela iniciativa privada, não existiriam hospitais privados, empresas de ônibus privadas, concessionárias de telefonia privadas, empresas de segurança privadas e até mesmo propriedades rurais particulares produtoras de alimentos. As prefeituras não poderiam contratar serviços de empresas privadas, afinal as prefeituras cuidam essencialmente da coisa pública.
Mas porque esse ódio não existe, por exemplo, em relação a outros níveis de ensino. Nunca se ouve falar de “proliferação indiscriminada de colégios particulares”. Ninguém questiona o lucro que os donos desses colégios acumulam, afinal não há nada de errado com isso e eles estão cumprindo seu papel.
Acumular lucro é base do funcionamento de nossa sociedade e ninguém questiona isso. Lucro e qualidade não são coisas antagônicas. Fosse verdade a Vale do Rio Doce não estaria entre as mais bem conceituadas empresas nacionais. Fosse verdade, a Brastemp nunca teria emplacado o tema da qualidade em suas campanhas. Fosse verdade, a Toyota não teria a reputação de solidez que os seus automóveis desfrutam. Na verdade, a lista é enorme e poderia incluir Boticário, Natura, Apple, Tigre, Volvo e tantas mais.


Quando Juliana ainda era bebê, o mundo estava passando por uma grande mudança. O Muro de Berlim foi derrubado e, com ele, ruiu a polarização ideológica que colocava, de forma tão intensa, capitalistas e comunistas em campos opostos.
Os tempos mudaram. Países comunistas abraçaram o mercado, tornando-se grandes exportadores de bens de consumo, e países capitalistas requentaram fórmulas intervencionistas, estatizando parcialmente um sistema financeiro em crise.
Mas algumas feridas dos tempos da Guerra Fria ainda não cicatrizaram e, em parte, podem ajudar a entender a razão do ódio que existe contra as faculdades particulares.
Do lado da direita, ainda existe latente em boa parte da elite a imagem que faculdade não pode ser algo para todo mundo. Desde que Dom João VI cá aportou, o sistema de ensino superior brasileiro tem sido estruturado de forma a atender os filhos da aristocracia. Na época, era complicado mandar os gajos a estudar lá em Coimbra. Desde então, as instituições públicas, através do vestibular, têm cumprido o papel de não permitir o acesso da patuléia. Todavia, depois que as faculdades particulares passaram a ter uma presença mais expressiva, essa restrição deixou de existir e muitos ainda não conseguem aceitar que a filha do taxista possa fazer uma faculdade.
Já do lado da esquerda, ainda há um bom contingente de pessoas que acredita estar na virada do Século XIX e que as únicas soluções para os problemas da humanidade são o fim da propriedade privada e a ditadura do proletariado. No meio educacional, em particular, essa situação é dramática. No Ensino Fundamental, não é raro encontrar aqueles que afirmam que o mais importante para as crianças é que se tornem críticos da sociedade, “combativos companheiros”, ainda que não saibam multiplicar e dividir. Enquanto agitam palavras de ordem baseadas em teorias ditas libertárias, nossos jovens acumulam seguidos fracassos nos exames da Educação Básica.
No Ensino Superior, a coisa se agrava. Historicamente a esquerda sempre teve grande influência no meio universitário. Para muitos, a universidade jamais poderá ser colocada a serviço do mercado, ao contrário, cabe a ela formar os líderes que, através de sua conscientização, serão os responsáveis por conduzir as reformas necessárias para a libertação do povo do domínio burguês.


O difícil mesmo vai ser explicar para Juliana que ela não pode sonhar em ser gerente da loja aonde trabalha, porque isso é uma aspiração burguesa. Difícil será explicar para os Pedros, Josés, Marias, Silvanas, Ricardos, Danielas e tantos outros, que eles não serão preparados para o mercado de trabalho e sim para serem líderes revolucionários. Difícil será explicar para os mais de 10 mil professores empregados pelas faculdades particulares baianas que o trabalho deles é de má qualidade, pois seus empregadores seriam pessoas sem escrúpulos, interessados somente no lucro fácil.
O Ensino Superior, na Bahia e no Brasil, só avançará de verdade quando esse ódio contra as faculdades particulares for resolvido e substituído por um pacto nacional, deixando de existir rótulos determinando a idoneidade das pessoas, simplesmente com base no tipo de faculdade em que trabalham ou estudam.