Santa ignorância

Não deveríamos sentir vergonha de assumir nossa própria ignorância. Claro, ninguém gosta de ser tachado de ignorante, mas há outra forma de ver essa questão. Tempos atrás, quando eu estava em uma videolocadora com minha filha, ela me perguntou: “Pai, que filme é esse?”. Era “Dança com Lobos”. Ela nunca tinha ouvido falar, totalmente “ignorante” sobre ele. Então, dessa ignorância surgiu a oportunidade do conhecimento. Assistiu e adorou. Fiquei pensando, quantas possibilidades para ela existiam. De “Blade Runner” à “A Cor Púrpura”, de “Pulp Fiction” a “Cinema Paradiso”, todos de um tempo que para ela não tinha muito significado.

Eu nunca tinha lido Machado de Assis (1839-1908). Quer dizer, tinha lido na adolescência, quando fui obrigado a degluti-lo na escola. Criei um ódio mortal, achava chato de doer. Aliás, porque será que fazem isso com os jovens? Por que os obrigam a ler coisas que dependem de certa maturidade para poder apreciar sua beleza? Um amigo meu costuma dizer: “É impossível apreciar Gustav Mahler, em toda sua plenitude, antes dos 40 anos”.

Bem, isso é tema para outro artigo, voltemos ao Machado. Li (ou reli) “Dom Casmurro” (escrito em 1899), no Kindle. Comprei na Amazon por quase nada. Estou até agora perturbardo. Machado de Assis não escreve, ele faz música com as palavras. Trata-as com tal facilidade, com tal elegância, com tal fluidez, que parece que está cantando. Então, dessa minha ignorância surgiu um mundo de possibilidades. Agora, tenho todo o tempo de minha vida para saborear “O Alienista”, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, e tantos outros. E eles sempre estiveram lá, nos espreitando com a musicalidade do texto de Machado.

Falando em música, confesso outra ignorância: não conhecia os “Novos Baianos”. Foi minha filha, dessa vez, quem me os apresentou. Sim, já tinha ouvido falar neles. Conhecia Pepeu, Baby e Moraes Moreira. Mas não sabia que eles (dentre outros) eram os “Novos Baianos”. Também conhecia os hits “Brasil Pandeiro”, “Samba da Minha Terra”, “Pombo Correio”, “Menino do Rio” e “Besta é Tu”. Mas nunca tinha me atentado para o fato de que uns são das carreiras solo e outros são do grupo. Mas o mais relevante, não sabia de sua história. Não sabia que moraram quase 10 anos, todos juntos, em uma fazenda, onde partilhavam o cotidiano de forma comunitária e viviam de paz, amor e música. Pude ver no Youtube vídeos daquela época, início dos anos 70, em que eles, crianças então, cantavam, de uma forma descompromissada e alegre, músicas que viriam a se tornar sucessos anos depois. Então, dessa minha outra ignorância, surgiu a oportunidade de passar dias curtindo esses vídeos antigos, em que usavam a música para passar uma mensagem de fé por uma vida simples, natural e alegre. Que coisa maravilhosa, senti até uma ponta de melancolia.

E foi assim, graças à minha ignorância, que tive o prazer de conhecer um gênio, que fez música de suas estórias, e esses artistas, que fizeram sua história através da música. Essa é, para mim, uma das principais mensagens que temos que passar aos nossos alunos: a ignorância, quando saciada, é uma inestimável oportunidade.

10 respostas para “Santa ignorância”

  1. Mauricio, que barbaro seu blog (sorry…este teclado nao acentua…)!!!
    Sei exatamente do que voce esta falando.
    Nestes dias, assistindo a Virada Digital, em Paraty, houve uma fala de uma palestrante jovem “tambem, quem leu e gostou de Machado de Assis, que so lemos obrigados na escola?”. EUUUU – gritei calada – pois tive o prazer de le-lo ha poucos anos, madura o suficiente para seu realismo, questionamento e critica sobre a mesquinhez humana.
    Ah, se todos aprendessemos que a Santa Ignorancia e nossa grande oportunidade para o conhecimento!
    Valeu!

  2. bravo, bravíssimo!
    que mensagem!!!!
    acho que a educação só tem chance de evoluir sempre se as “oportunidades” forem realmente valorizadas!

    parabéns!

  3. Que lindo, escreveu lindamente o que sempre pensei e passei para meus alunos. Não devemos nos envergonhar de nossa ignorância, “aquele que acha que sabe tudo nada sabe”…

  4. Realmente, certas coisas só podem ser apreciadas no devido tempo..eu tb incluiria o Eça nesta lista 🙂 Mas o que mais importa é estar sempre disposto e aberto ao que vier, tanto à novidade quanto aquilo que a gente deixou passar despercebido..sempre é tempo! Muito bom o seu texto!! Abraços:)

  5. Grande Minhoca. É com grande satisfação que “descobri ” seu blog e fiquei encantado. Esse especialmente pois aprendi tb a gostar de M Assis e outros ícones de nossa literatura , que outrora detestei. Minha filha no terceiro colegial é que me abriu esse horizonte, quando disse que as obras eram muito chatas. Fui conferir e virei fã. Parabens pelos seus artigos, extremamente didáticos e interessantes. Não conhecia esta sua faceta. PARABÉNS

  6. Maurício,
    Acredito que quando admitimos nossa ignorância evoluímos um pouquinho! Sempre digo aos meus alunos: Falem que não sabem ou que não entederam. Só assim vocês terão a oportunidade de aprender o que ignoram.
    Parabéns pelo texto.

  7. Maurício,
    Só agora conheci seu Blog. Estou adorando! Li Machado de Assis na adolescência e adorei! Mas conheço diversas pessoas que não gostam do escritor. Vou aconselha-las a reler. Vou fazer o mesmo. Já faz 30 anos que não o visito.
    Parabéns!

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