A verdade está em toda parte

Era uma vez um sábio que nasceu no ano de 780, em uma distante cidade do atual Uzbequistão chamada Khawarizm, hoje denominada Khiva ou Xiva. Viveu 70 anos, morrendo em 850 na cidade de Bagdá. Ao longo de sua vida, o sábio se dedicou ao estudo da matemática e aprimorou o modelo numérico criado pelos indianos, inclusive com a notação decimal. Desenvolveu um método para resolver equações quadráticas, que ele denominou de al-Jabr. Por sua origem, o sábio era chamado de al-Khawarizm. Naquela época, Século IX, o mundo islâmico vivia momentos de glória e os califas estimulavam o desenvolvimento das ciências. Tornou-se praxe traduzir para o árabe os clássicos gregos, hindus e persas. No Marrocos, em 859, era fundada a Universidade de Karueein, que existe até hoje e é considerada a universidade em funcionamento mais antiga do mundo.

Em outra parte do mundo, o Ocidente vivia momentos de trevas. Dominada pelo fundamentalismo cristão, a Europa renegava seu passado clássico e mergulhava em dogmas e superstições. Humberto Eco, em “O Nome da Rosa” (que se tornou popular com o filme estrelado por Sean Connery), ilustra bem o espírito medieval: não se permitia, por exemplo, a leitura de Aristóteles e Platão. Os poucos exemplares desses autores jaziam sepultados nas herméticas bibliotecas da Igreja. Outra história emblemática é a contada por Noah Gordon, no livro “The Physician“, em que relata as aventuras de um jovem europeu que quer estudar medicina e viaja à Pérsia para aprender com Avicenna.

Quando se iniciaram as Cruzadas, no Século XI, um fenômeno interessante aconteceu. Durante os 200 anos das várias Cruzadas, não foram apenas batalhas que ocorreram entre cristãos e muçulmanos. Houve intenso intercâmbio cultural. De repente, europeus vivendo em condições quase neolíticas se depararam com um mundo culturalmente muito mais avançado. Foi através das bibliotecas árabes que os europeus voltaram a ler os grandes filósofos clássicos (os livros foram traduzidos para o latim a partir do árabe, não do grego). Foi através dos árabes que os europeus conheceram uma matemática muito mais avançada. Descobriram os cálculos de al-Khawarizm, de cujo nome derivaram as palavras “algarismo”, “algoritmo” e “logaritmo”. De seu método al-Jabr surgiu a “álgebra”. Chamamos de “arábicos” os algarismos que usamos cotidianamente por causa dessa origem, os quais são muito mais apropriados para cálculos que os algarismos romanos. Basta imaginar a diferença para calcular 1000 – 489, ao invés de M – CDLXXXIX. Notar inclusive que nos algarismos romanos a quantidade de dígitos não é proporcional ao valor expresso, algo difícil de entender. Além disso, os algarismos romanos não possuem o zero, ou seja, é um conceito que não existia na cultura europeia daquela época.

A influência dos árabes não foi pequena. Não é por coincidência que exatamente durante o período das Cruzadas (a primeira foi em 1096, a nona em 1271) surgiram as universidades europeias: Bolonha (1088), Paris (1090), Oxford (1096), Modena (1175), Cambridge (1209), Salamanca (1218), Montpellier (1220), Pádua (1222), Nápoles (1224), Toulouse (1229), Siena (1240), Valladolid (1241), Múrcia (1272) e Coimbra (1290).

Esses fatos nos ajudam a desfazer a imagem de que a sabedoria se originou apenas na Europa e que não havia vida inteligente em outras partes do mundo. Ajudam a nos lembrar de que faz parte do espírito de todo professor questionar aquilo que aprende e, especialmente, aquilo que ensina.

6 respostas para “A verdade está em toda parte”

  1. Mauricio, sempre adorei História… talvez por ser filha de um professor de História e de uma mãe formada em Belas Artes, aprendi que não dá para entender o presente sem conhecer o passado… adorei seu texto e seu blog! Essas “pitadas” de História alimentam nosso conhecimento e nos fazem refletir que diariamente nós também fazemos parte da história da humanidade… pequenos grãos de areia no todo…!

    1. Cibele, gosto de um ditado sobre isso que diz: “A tradição não é uma barreira para o progresso. É no passado que se encontram as sementes para as grandes mudanças”.
      Obrigado pelo post.

  2. Caro amigo Maurício, nossa juventude carece de conhecer e compreender a essência… O colega é especialista em trazer a luz temas históricos que validam debates contemporâneos, além de redigir textos extremamente “palatáveis” e interesantes. Muito bom!

  3. Maurício,
    Sobre este assunto tem este MARAVILHOSO livro, que recomendo, pois retrata este rico momento de integração entre as culturas européias e muçulmanas.

    O Ornamento do Mundo
    Autor: Menocal, María Rosa
    Editora: Record
    Categoria: Geografia e Historia / Historia Mundial
    Um retrato da vibrante civilização da Espanha medieval, “O Ornamento do Mundo” mostra a história de um extraordinário tempo e lugar: a Andaluzia entre 786 e 1492, onde o melhor que muçulmanos, judeus e cristão ofereciam eram combinados influenciando a cultura européia de forma radical por sete séculos.

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