Download ou Upload?

Sócrates (469aC – 399aC) não deixou escritos. O que sabemos dele, veio dos escritos de outras pessoas, sobretudo de Platão (428aC – 347aC), um de seus principais seguidores, que registrou muito de seus pensamentos nos chamados “Diálogos”. Dizia-se que Sócrates raramente respondia diretamente as perguntas de seus discípulos. Ao contrário, ele retornava com uma nova pergunta, intrigante. Através das discussões em torno das perguntas, Sócrates conduzia seu interlocutor a construir, por si mesmo, a sua resposta. Tal método foi denominado de “Maiêutica”, que significa aproximadamente “A arte de parir ideias”.

Esse confronto entre “tese” e “antítese”, em busca da “síntese”, veio a ser chamado de “método dialético” e sua principal característica era a construção do conhecimento a partir da participação ativa do aluno. No método dialético, não existe previamente uma verdade. Ela precisa ser construída pela postura crítica do aluno, estimulado pelo mestre. O método foi amplamente usado por Platão, em sua “Academia” e, posteriormente, por Aristóteles (384aC – 322aC), em seu “Liceu”. Diz-se que Aristóteles conduzia as discussões com seus discípulos enquanto caminhava, procedimento que passou a ser chamado de “peripatético”, que significa “ambulante” ou “itinerante”.

A Grécia, naquela época, não tinha reis. Os cidadãos gregos viviam em cidades–estado, com direitos civis estruturados, no chamado “Período Clássico”. É incrível imaginar que o conceito da democracia possa ter tido tanta força numa época tão antiga.

Todavia, esse período terminou em meados do século IV aC. A ascensão da Macedônia trouxe de volta a figura do rei ou imperador e a posterior ocupação romana em 146 aC fez da Grécia uma província. Somente quase 2 mil anos depois é que a Grécia retomou sua independência, com a vitória sobre o Império Otomano em 1827 (5 anos depois da Independência do Brasil!).

Com a Idade Média, o centro do poder deslocou-se para a Igreja Cristã. A liturgia e o rigor da hierarquia eclesiástica trouxeram uma nova dinâmica na forma de ensinar. Vieram as longas preleções e as pesadas leituras. As discussões tornam-se raras e a aprendizagem passiva é a forma pedagógica vigente. No início da Idade Moderna, surge “Ratio Studiorum” (em latim, “Plano de Estudos”), publicado em 1599, documento que reúne as diretrizes pedagógicas para a formação de jesuítas.

Até hoje, o pensamento medieval, escolástico (de origem religiosa), exerce profunda influência nas instituições de ensino. Termos próprios da Igreja, como “congregação”, “cátedra” (catedral), “reitor”, “púlpito”, entre outros, são até hoje empregados nas universidades em todo o mundo.

A metodologia pedagógica evoluiu de um modelo “clássico”, em que o aluno carrega seus pensamentos, críticos, nas discussões estimuladas pelo mestre (upload), para um modelo “medieval”, em que o aluno recebe o conhecimento pronto, dogmático, através da preleção do mestre (download).

A tecnologia chega e a história se repete

Quando a Internet foi criada, em 1986, o conceito foi o de estabelecer uma estrutura não centralizada, uma rede multicêntrica de computadores, especialmente para fins de defesa e segurança. Através desta estrutura as pessoas poderiam ser ligadas e manter diálogos constantes. É interessante notar que a Internet nasceu com o conceito de upload.

No entanto, quando Tim Berners-Lee criou a web, em 1989, um novo conceito surgiu: as pessoas passaram a ter informações disponíveis de sites. Este conceito se espalhou rapidamente por todo o mundo e milhões de sites foram criados com o objetivo de oferecer diferentes tipos de informação.

O processo de download voltou à cena. Na educação, as metodologias via web basearam-se nesse conceito. Escolas criaram bibliotecas virtuais, cursos virtuais, livros virtuais, atlas virtuais, repositórios virtuais, objetos de aprendizagem e muitas outras coisas que poderiam ser “baixados” pelos alunos. Dessa forma, o ensino via web nasceu baseado nas preleções medievais, não na dialética clássica.

O resgate clássico

O pensamento clássico dos séculos V e IV aC permaneceu sucumbido durante séculos na Europa Ocidental, até que com as Cruzadas os europeus passam a redescobri-lo através dos árabes (ver mais sobre isso em outro post desse blog). Vem o Renascimento e a cultura clássica retoma o seu lugar. Desde então, movimentos de resgate da dialética na educação passam a surgir. Comenius (1592-1670) é um dos primeiros, e afirma: “é preciso ensinar menos para que os alunos possam aprender mais”, algo impensável em tempos de escolástica.

Mas é no final do século XIX e no começo do século XX que a dialética clássica começa a reconquistar seu espaço na educação. Mark Twain (1835-1910) ironizava: “a minha educação é algo importante demais para eu deixar nas mãos da escola”. Com John Dewey (1859-1952), surge o conceito do ensino focado no aluno e o da aprendizagem ativa. Posteriormente, inúmeros outros educadores vieram a defender o resgate da dialética clássica, tal como Rudolf Steiner (1861-1925), Maria Montessori (1870-1952), Lev Vygotsky (1896-1934) e Jean Piaget (1896-1980). A filosofia desses educadores recebeu várias designações, tal como “escolar nova”, “construtivismo”, etc., mas de uma forma ou de outra, todas defendem o aluno no centro do processo de aprendizagem, não o professor e muito menos o conteúdo, ressuscitando a maiêutica socrática de 2500 anos atrás.

O upload volta a ganhar força.

A tecnologia viabilizando o resgate clássico

Os métodos construtivistas, porém, sempre esbarraram na sua limitada escalabilidade. Via de regra, apenas escolas experimentais, com turmas muito pequenas e professores diferenciados conseguiram obter sucesso com essa metodologia. No Ensino Superior, por sua vez, praticamente inexistem exemplos de sucesso.

A tecnologia, todavia, mais uma vez repetiu a história. Quando começaram a surgir os blogs, no início dos anos 2000, uma conceito totalmente diferente surgiu: as informações na web passaram a ser postadas por qualquer pessoa, não precisavam mais depender de programadores, webmaster e outros profissionais da web. Na mesma época, surgia também outro conceito que viria a ser transformador: as redes sociais. Com o MySpace (1999), surgiram inúmeras plataformas como o Habbo (2000), hi5 (2003), Orkut (2004) e o Facebook (2004). Nas redes sociais, qualquer um pode fazer o upload de informações.

Outro fenômeno dessa época foram os sites colaborativos através da tecnologia wiki, dos quais a Wikipedia (2001) é a máxima expressão. O conceito wiki é totalmente revolucionário, pois as informações dos sites são construídas ativamente pelos visitantes.

O conjunto dessas iniciativas, em que o usuário deixa de ser um simples consumidor de informações via download e passa a ser um agente fornecedor de informações via upload, passou a ser chamado de Web 2.0. Praticamente todas as iniciativas de sucesso que vieram desde então basearam-se no upload, tais como o Youtube, o Instagram e os jogos em massa (MMORPG – Massive Multiplayer Online Role-Playing Game).

A própria web, por sua vez, deixou de ser a única mídia para essa nova tecnologia, passando a conviver com uma geração cada vez mais expressiva de dispositivos móveis, como tablets e smartphones.

E na educação?

Na educação, porém, o upload baseado na tecnologia ainda está engatinhando. Passados mais de 10 anos da Web 2.0, ainda são isoladas e experimentais as iniciativas inovadoras na educação. Até o momento, a educação, seja presencial, seja online, segue o modelo escolástico medieval.

Algumas inovações, porém, parecem sinalizar mudanças. Os MOOCs (Massive Open Online Courses) já contam com milhões de adeptos em iniciativas capitaneadas por importantes instituições como Harvard, Stanford e MIT. Em alguns MOOCs os alunos interagem entre si e a aprendizagem depende exatamente do processo dialético.

O acompanhamento individual dos alunos, através de plataformas de aprendizagem adaptativa, tal com a Knewton, também é uma tendência promissora. Os alunos deixam de ser tratados em grupos uniformes e cada aluno passa a receber uma orientação personalizada em função de seus interesses e de seu estilo de aprendizagem.

Ainda é muito cedo para afirmar que essas novas ferramentas tecnológicas vão, de fato, resgatar em ampla escala o processo dialético de aprendizagem e o que upload voltará a ter a importância que tinha no Período Clássico.

Somente o tempo dirá quem tem mais força: o download ou o upload.

 

4 respostas para “Download ou Upload?”

  1. impressionante a visão que vc tem, os conhecimentos, a inteligencia e capacidade
    parabens amigo, vc é realmente genial

  2. Fantástico!!! Realmente genial.
    Tenho visto em algumas Universidades Americanas o sistema dialético onde o professor apenas tem um papel de facilitador da discussão, mantendo o rumo e o foco com perguntas até que os alunos cheguem à conclusão do tema proposto e portanto o objetivo de aprendizado. Temos tentado a implantação do upload, porém a grande barreira ainda é a cultura do aluno, que espera receber o conteúdo mastigado, bem como a resistência a mudanças por parte do professor (mudança de paradigma).

  3. Prof Mauricio Garcia, você eternamente será um exemplo a ser seguido. Profe, hoje decidi começar o meu Ano Novo surfando pelo teu site… estou me deliciando com tantos textos maravilhosos !!!

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